Um “polaco loco paca”, um “kamiquase” ou até mesmo um “cachorro louco”. Vem de seus próprios textos alguns adjetivos que talvez melhor descrevam Paulo Leminski. O poeta curitibano, que em agosto completaria 81 anos, será o homenageado na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O maior evento literário brasileiro e um dos principais da América Latina acontece entre os dias 30 de julho e 3 de agosto, na cidade litorânea do Rio de Janeiro.
Assim como os epítetos, também são muitos os títulos: poeta, escritor, tradutor, ensaísta, músico, grafiteiro, agitador, professor, publicitário, jornalista, judoca e um pouco mais. Um “múltiplo Leminski”, como foi batizada a exposição em sua homenagem que esteve em cartaz no Museu Oscar Niemeyer (MON), entre 2012 e 2013, e passou por 10 cidades, sendo vista por mais de 600 mil pessoas.
“Meu pai era um artista absolutamente multifacetado e à frente do seu tempo. Foi precursor de uma linguagem que é muito comum hoje, especialmente nas redes: objetiva, concisa, direta ao ponto. Ele dizia o máximo com o mínimo – e fazia isso com humor, ironia, leveza e uma profundidade impressionante”, afirma Estrela Ruiz Leminski, filha do autor com a também poeta Alice Ruiz. “Mas para além da forma, ele era um pensador de cultura, que transitava com naturalidade entre o erudito e o popular. Ele foi muitas coisas e, em tudo isso, foi inovador”.
Esse caminho aberto por Leminski em muitas áreas se tornou uma inspiração para as gerações seguintes de escritores, principalmente em Curitiba. “Para nós, que produzimos poesia e literatura, o Leminski é um farol, uma grande luz que emana com a sua multiplicidade e capacidade de ação”, afirma o também escritor Luiz Felipe Leprevost, diretor da Biblioteca Pública do Paraná (BPP).
“Ele era altamente erudito, criativo e popular, tanto na poesia que fez em forma de canção como naquela que entrou nos livros. Ele tem uma obra aberta que está sempre sendo redescoberta, é um bigode que nunca saiu de moda”, brinca.
Curitibano por excelência, um “pinheiro que não se transplanta”, como ele mesmo dizia, Paulo Leminski Filho nasceu em 24 de agosto de 1944 na cidade que tanto se traduz em sua obra. O pai, Paulo Leminski, era filho de poloneses, e a mãe, Áurea Pereira Mendes Leminski, tinha ascendência portuguesa, negra e indígena. Teve também um irmão dois anos mais novo, Pedro Leminski, com quem compôs a música “Oração de um suicida”, que abre o primeiro álbum da banda curitibana Blindagem, de 1981.
Com Ivo Rodrigues, vocalista do Blindagem e também da precursora do rock curitibano A Chave, teve uma grande parceria musical. Além disso, suas composições foram gravadas por nomes como Caetano Veloso, que colocou "Verdura" no álbum "Outras Palavras", de 1981; pelos “novos baianos” Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira, que gravaram, entre outras, as músicas "Valeu", "Se houver céu" e "Lêda"; Arnaldo Antunes, com "UTI" e "Além alma", e por Zélia Duncan, que gravou "Dor Elegante", antes musicada por Itamar Assumpção, além de outras figuras importantes da cena musical brasileira.
“Nos anos 1980, o Leminski era muito presente no rádio e na TV. Muita gente o conheceu primeiro como letrista, pelas músicas que fez com Moraes Moreira, Caetano, A Cor do Som, Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção, Blindagem. Se você fosse jovem naquela época, talvez fosse mais fácil conhecer ele pelo som do que pelos livros”, conta Estrela. “Eu cresci ouvindo as músicas dele, e sempre me espantava com a reação das pessoas por não saberem que eram de sua autoria. São canções que marcaram época, tocaram em novelas, foram cantadas por artistas como Ney Matogrosso e chegaram até ao universo infantil”.
Em 2009, Estrela começou a organizar o legado musical do pai e, em 2014, lançou o projeto Leminskanções, álbum duplo que reúne 25 faixas e é a compilação mais completa de sua obra musical. “Convidei artistas que se inspiraram na obra dele, parceiros e intérpretes, como Zélia Duncan, Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro. E tive a alegria de contar com Moraes Moreira, que é meu padrinho e um dos artistas que mais colaborou com ele. Moraes chegou a me dizer que sonhava em gravar um disco só com suas parcerias com o Leminski”, diz.
No ano seguinte, foi lançado o Songbook Paulo Leminski, que reúne um farto material de suas composições, retirado de cadernos, rascunhos, fitas K7 e até de guardanapos, e que conta com mais de 100 músicas, muitas inéditas. Não à toa, seu nome batiza o principal palco musical de Curitiba, a Pedreira Paulo Leminski, que no ano passado abrigou o festival que celebrou os 80 anos do autor e que deve ganhar uma segunda edição neste ano.
Agora, em 2025, o Leminskanções ganha novo fôlego enquanto show, com canções inéditas (algumas que não estão no Songbook) que a filha vem preparando, em parceria com o produtor Gustavo Ruiz. “Para mim é emocionante ver isso tudo florescer, porque meu pai sempre disse que precisou se transformar em compositor para que a poesia dele se manifestasse também na música. Hoje, o título de compositor não está mais em questão. Ele é reconhecido como poeta, sim, mas também como músico. E o Leminskanções é um jeito de manter esse legado vivo, pulsando, no corpo e na voz”, comenta.
LITERATURA – “Distraídos Venceremos”, título de um de seus livros de poesia, publicado em 1987 pela editora Brasiliense, resume um pouco sobre o caminho em que sua produção literária andou. Apesar de não ter participado diretamente do grupo, Leminski acabou inserido na chamada Poesia Marginal, movimento literário que surgiu na década da 1970 e é marcado pela independência das publicações, que eram lançadas pelos próprios autores em edições mimeografadas.
Ele, porém, não aparece na antologia "26 Poetas Hoje", organizada por Heloísa Teixeira e que foi responsável por lançar, em 1975, os poetas da Geração Mimeógrafo, trazendo nomes que caminhavam à margem, mas que hoje são considerados cânones, como Ana Cristina César e Torquato Neto. “A antologia tem uma falha técnica absurda, que é a falta do Leminski. Mas o Leminski estava no Paraná e naquela época eu não sabia que ele tinha nascido”, chegou a declarar a escritora em entrevistas.
A produção literária começou cedo e, em 44 anos de vida, caminhou entre poesia, prosa, ensaios, biografias e traduções. Aos 19 anos já estava presente nos círculos da literatura, como quando participou, em 1963, do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, principais nomes da chamada Poesia Concreta.
“Leminski se alinhou bastante aos poetas concretistas, embora não tenha sido um concretista. Também se alinhou à Poesia Marginal, apesar de não ter feito parte do movimento”, destaca Leprevost.
Os primeiros cinco poemas foram publicados em 1964, na revista Invenção, editada pelo também poeta Décio Pignatari. No ano seguinte, Leminski ficou em primeiro lugar no II Concurso Popular de Poesia Moderna, promovido pelo jornal "O Estado do Paraná".
"CATATAU" – Já os primeiros livros são editados nos anos 1970. Resultado de oito anos de trabalho, a estreia aconteceu em 1975, com a publicação, pelo próprio autor, do livro de prosa experimental "Catatau", que tem como personagem o filósofo René Descartes divagando em alucinações pelos trópicos, partindo da premissa de que o filósofo estivesse no Brasil vindo na comitiva do conquistador Maurício de Nassau.
“Do ponto de vista da erudição, o 'Catatau' é muito sofisticado. Você vê a erudição de Leminski ser colocada para jogo no ponto de vista da linguagem. Você vê ele experimentando e expandindo a linguagem até limites que talvez a literatura não tinha atingido ainda, apesar das fortes referência a James Joyce”, explica Leprevost. “O 'Catatau' faz algo que é próprio, que é só dele, e tem essa premissa maravilhosa que é o Descartes, pai do racionalismo, delirando nos trópicos. O texto é um delírio com método, múltiplo e coeso ao mesmo tempo, além de muito poético”.
Na poesia, sua principal faceta, estreou em 1976 com "40 clicks em Curitiba", em parceria com o fotógrafo Jack Pires; e publicou também "Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase" (1980), "Polonaises" (1980), "Caprichos & Relaxos" (1983) e "Distraídos Venceremos" (1987), os dois últimos pela Brasiliense.
A parceria com a tradicional editora também rendeu títulos em outros gêneros, como a série de biografias que retratam "Cruz e Souza" (1983), "Matsuo Basho" (1983), "Jesus A.C." (1983) e "Leon Trotsky" (1986) e a novela "Agora que são elas" (1984), além de diversas traduções, como "Pergunte ao pó" (1984), de John Fante, e "Um atrapalho no trabalho" (1985), de John Lennon.
Também publicou, por outras editoras, o infanto-juvenil "Guerra dentro da gente" (1988), os ensaios de "Anseios cripticos" (1986) e "Metaformose", publicado postumamente, em 1994, assim como outros dois livros de poesia "La vie em close" (1991) e "O ex-estranho" (1996), além do livro de contos "Gozo fabuloso" (2005).
TODA POESIA – Mesmo com toda essa produção, e o reconhecimento de outros artistas e intelectuais, a produção de Leminski permaneceu por algum tempo mais restrita a Curitiba e ao Paraná. Nas palavras de Estrela, foi um processo lento até que ele passasse a ser reconhecido nacionalmente, e mais recentemente, como um dos maiores nomes da cultura brasileira.
O ponto de virada foi em 2013, quando a Companhia das Letras publica a coletânea "Toda Poesia", fruto de um trabalho de cuidado e dedicação com sua obra, feito principalmente por Alice Ruiz, sua companheira por 20 anos e mãe de três de seus filhos: Miguel (que morreu em 1979, aos 9 anos de idade), Áurea e Estrela.
Após sua morte, em 1989, Alice se dedicou a cuidar dos originais e foi a responsável por organizar e preservar seus escritos, além de propor a publicação da antologia. "Toda Poesia" se tornou um best-seller e figurou entre as listas dos mais vendidos quando foi publicado, algo inédito para um poeta experimental.
O sucesso póstumo, principalmente de seus poemas, tem muito a ver com sua linguagem direta, que conversa com as novas gerações de leitores. “Muita gente me pergunta por que os versos dele continuam tão atuais. E eu sempre lembro que ele mesmo dizia: ‘tem que ter por quê?’. O que sei é que os versos dele combinam com o nosso tempo. São diretos, sintéticos, contundentes, cheios de lirismo e sempre além do óbvio. Ele queria a poesia além do papel: nos muros, nas camisetas, nos saraus, nas redes”, afirma Estrela.
O cuidado com a obra permanece com as filhas Áurea e Estrela, que criaram o Instituto Paulo Leminski para dar corpo a esse trabalho. Elas também trabalham na digitalização de seu acervo. “Queremos criar um portal vivo, acessível, que permita que as múltiplas camadas do Leminski continuem em movimento. Porque esse é o espírito dele: estar em movimento”, complementa a filha.
Parafraseando um de seus poemas, Paulo Leminski é uma linha que nunca termina. Em seus 44 anos de vida, teve uma produção tão profícua que, mais uma vez, talvez apenas sua própria poesia possa descrever: “Já disse de nós./ Já disse de mim./ Já disse do mundo./ Já disse agora,/ eu que já disse nunca. Todo mundo sabe,/ eu já disse muito./ Tenho a impressão que já disse tudo./ E tudo foi tão de repente...”